sexta-feira, 5 de julho de 2013

O Encantador, o Lobo Alfa e a Vovozinha.

Ou de como enganar a muitos por muito tempo mesmo sabendo muito pouco!

Cláudio

 *Este esclarecedor texto é do meu amigo Cláudio Pinheiro Junior - adestrador e estudioso do comportamento de cães (e pai de um dos menininhos mais lindinhos que já vi! o Tum!!) lá de Porto Alegre.

Como adestrador profissional de cães e estudioso do comportamento animal, muitas vezes me deparo com cães em situação de agressão frente a seus proprietários. E não raro o diagnóstico da situação já vem pronto: problema de dominância, falta de reconhecimento do líder, complexo de cão alfa (pasmem). E como já tem o diagnóstico tem também o remédio: a saída é mostrar ao cão quem manda. Mas como não sabem se comunicar de maneira que o cão lhes entenda, metem-lhe logo um colar enforcador no pescoço e o esgoelam até quase a asfixia. Não raro enquanto esgoelam gritam em língua portuguesa: o líder sou eu! Pausadamente, para o cão não ter dúvidas. Ou então aplicam beliscões nos flancos enquanto emitem um som parecido ao sibilar de uma cascavel do deserto. Invariavelmente estas pessoas são expectadoras do programa O Encantador de Cães que passa em alguns canais da TV paga e muito mal, no meu entendimento, causa à relação entre os animais humanos e caninos.
Muito pouco ou nada adianta tentar explicar que não é necessária a lesão física para ensinar a um cão o comportamento desejado. Vivemos uma cultura de violência e a agressão é parte de nossas relações interpessoais e interespecíficas. Parece normal “castigar” um cão se ele se comporta de maneira que julgamos inadequada ou então se ele nos “desobedece”.
O Líder Alfa

Alguns conceitos da ciência do comportamento se popularizaram de tal maneira que é
comum ouvirmos de leigos expressões como líder, alfa, e dominância. Toda a popularização do conhecimento deve ser bem vista, exceto quando os conceitos entram na cultura popular defasados e distorcidos. O conceito de cão alfa/dominância, tal como se popularizou, nasceu de estudos de curto prazo realizados com alcateias de lobos na década de 1940. Na época foi uma grande conquista da ciência, já que os animais estudados estavam o mais próximo possível de seu habitat natural. No entanto, nestes 70 anos que se passaram a ciência não ficou estática e novos estudos produziram novos conhecimentos. Os principais problemas deste conceito alfa/dominância são:

1. Foram realizados com poucos indivíduos e durante um período curto de tempo. Assim os pesquisadores se concentraram em facetas mais evidentes do comportamento, como a caça. Não é uma amostragem aceitável estatisticamente, já que representa pouco tempo na vida de poucos exemplares de lobos.
2. Os comportamentos ritualísticos foram, infelizmente, mal interpretados pelos pesquisadores. A manobra conhecida como Alpha Roll, que faz o cão deitar-se expondo sua barriga e genitália foi entendida como uma mostra de força do cão hierarquicamente superior sobre o inferior. Esta posição é muito mais uma atitude de apaziguamento, tomada pelo cão inferior.
3. Cães descendem dos lobos, mas são cães e não lobos. Milhares de anos de domesticação e convívio com o ser humano definiram importantes mudanças comportamentais entre as espécies. Estudar os lobos para entender os cães é quase tão inócuo quanto estudar os filhotes de primatas superiores para entender os comportamentos da juventude rebelde. Entre a Chita e a Jane há uma história evolucionária distinta e complexa. Tarzan que o diga, já que muito sofreu para conciliar os desejos de suas companheiras na casinha da árvore. Vamos encontrar uma base comum, mas as distintas espécies tem distintos comportamentos frente a distintas situações.
O apresentador de O Encantador de Cães (Dog Whisperer) utiliza-se muito da técnica do Alpha Roll em seus programas. Na verdade esta técnica foi apresentada em 1976 no livro How to be your dog's best friend editado pelos monges de New Skete, uma comunidade religiosa ortodoxa oriental do norte do estado de Nova Iorque. César Millán bebeu água desta vertente, mas esqueceu-se de ler a atualização publicada em 2002 (e lá se vão mais de 10 anos) na qual o monge Job Michael Evans se retrata:
"Já não recomendamos esta técnica e veementemente desencorajamos que os nossos clientes e seguidores a usem... É potencialmente perigoso e pode levar a que o dono do cão leve uma mordida na cara (ou pior)...”.
Submeter forçadamente um cão a ficar deitado de lado nada tem a ver com o comportamento natural de submissão/apaziguamento de expor a barriga e genitais. Como já vimos, o comportamento natural é voluntário e oferecido pelo lobo/cão que deseja encerrar a disputa demonstrando submissão. Forçar o cão a ficar deitado de lado pode ser interpretado como uma agressão e um revide do cão seria totalmente lícito.
Em vários programas da série assisti ao sangue vertendo das mãos e braços d’O Encantador. E o sangue é apresentado como um troféu de guerra, um triunfo, uma coragem especial. Todas as vezes que vi jorrar sangue em frente às câmeras a rusga foi com cães de pequeno porte, com baixo poder ofensivo. Fico imaginando a mesma situação com um cão de grande porte. Por certo César estaria com um braço pendurado e o eterno sorriso amarelo disfarçando a dor. Eu, particularmente, entendo que quando nos lesionamos houve um acidente de trabalho. E se eu não consigo me comunicar com o cão de maneira que não haja riscos à integridade física minha e dele, algo está errado com a minha técnica.
Em trecho mais adiante o monge-treinador adverte, fazendo seu mea culpa:
"Cuidado! - donos de cães que tentam dominar o seu cão verbal ou fisicamente acabam com cães medrosos e neuróticos".

E aqui reside outra crítica ao “método” César Millán. Um cão, mesmo sem sofrer uma grande lesão física, pode desenvolver um trauma para toda a vida. E o trauma acaba se transformando em um problema comportamental. Achar que um cão que tem medo compulsivo vai superar suas fobias se o expusermos radicalmente ao desencadeante é o mesmo que acharmos que vamos curar alguém que sofre de síndrome do pânico amarrando-o a um poste em um cruzamento movimentado. Popularmente diríamos “pior a emenda que o soneto”.
Mas eu conheço um cão “reabilitado” ou “encantado”
E quando chegamos neste ponto, invariavelmente, surge o argumento de que o fulano, beltrano ou cicrano “reabilitou” cães usando a técnica do César Millán. Devemos ter muito cuidado quando utilizamos os termos reabilitado ou ressocializado. Em muitos episódios que assisti, depois de travar uma luta ferrenha (totalmente desnecessária, brutal e desumana) com o cão o “líder” humano finalmente se sobressai e vence a justa, submetendo-se o cão a superioridade do mexicano-americano. Mas a verdade é que nenhum tutor de cão em sã consciência permitiria que um “treinador” subjugasse seu cão daquela forma. Os maus tratos são evidentes na técnica usada pelo “Encantador de Cães”. O que justifica a aceitação dos abusos praticados é a tendência que temos em aceitar pacificamente tudo o que vem de superiores. Há estudos em que pessoas comuns são recrutadas para experiências comportamentais e submetem outros seres humanos a choques elétricos somente por que quem mandou executar a tortura era um homem de avental branco que havia se apresentado como médico e tinha um crachá na lapela. Então alguém que se apresenta como especialista em um canal da TV paga tido como científico é alguém que deve saber o que faz.
Segundo o “Encantador” o cão “reabilitado” apresenta uma energia calma e assertiva. Qual o aparelho medidor de energia que ele usa não sabemos. Mas sabemos fazer uma leitura do comportamento exibido pelo cão. Em geral os cães apresentam-se quietos (e não calmos e muito menos relaxados) e exibem sinais claros de stress como postura hirta, lambeduras, respiração ofegante ou coceiras e recusa de alimentos. Ao invés de uma energia calma e assertiva encantada, os cães exibem um comportamento conhecido como “shut down” ou “learned helplessness”. Em português poderíamos dizer que o cão está “desligado” ou em uma situação de desamparo aprendido. Isso significa que o cão simplesmente desistiu de demonstrar qualquer tipo de comportamento, com o propósito de encerrar o confronto. Fazendo uma analogia barata seria mais ou menos quando percebemos que o atraso é inevitável e então passamos a realizar as tarefas calmamente, já que por mais que nos apressemos não vamos conseguir fazer com que o relógio ande para trás.
Este comportamento do desamparo aprendido foi observado por cientistas que colocaram cães em uma caixa fechada e lhes ministraram choques elétricos através do piso. Como era de se esperar os cães inicialmente tentaram escapar e, depois de certo tempo, já exaustos e frustrados por não encontrarem uma saída para a situação de desconforto, simplesmente deitavam-se no chão. O mesmo chão que lhes continuava a causar choque! Estariam eles calmos e assertivos levando choques? Evidentemente que não! Apenas a experiência lhes ensinou que independentemente da atitude que tinham o choque não cessava. Então a saída mais plausível seria ficar imóvel, “desligado” em “desamparo”. Enfim, o desamparo aprendido é a situação onde um animal, seja ele humano ou não, fica impotente frente ao inevitável. Algo do tipo “o que não tem remédio, remediado está”.
A Agressividade e o Método Encantador
Sofrermos com a agressividade vinda de um animal que é considerado nosso melhor amigo é perturbador. Sonhamos com um cão que venha em nossa direção abanando a cauda (o que nem sempre condiz com consenso geral). A Agressividade Canina está sempre relacionada a um contexto e devemos aprender a ler e entender as expressões e rituais dos cães como forma de melhor nos comunicarmos e evitarmos acidentes e traumas para ambos. Muito resumidamente os principais contextos nos quais a agressividade se manifesta são:
Territorial: disputa por espaços de ocupação;
Predatória: disputa por alimentos;
Defesa: proteção de sua integridade física e ou de seus objetos como brinquedos e ossinhos e também a agressão por resposta a um estímulo doloroso;
Status Social: disputa hierárquica na matilha;
Medo: atitude presente em todos os organismos, a reação normal ao medo é fugir, paralisar ou lutar.
Se um cão está a agredir um ser humano justamente porque está com medo, quando mais lutamos, mais aumentamos seu medo. O método de César pode até funcionar em cães que estão em agressão por disputa de status social, mas se a agressão for desencadeada por qualquer outro motivo a técnica será altamente prejudicial e danosa. Mesmo na disputa hierárquica há maneiras mais racionais de se resolver o conflito, sem que tenhamos que usar da força física. Todo o tratamento comportamental deve primar pela segurança e pelo zelo físico de todos os envolvidos no processo, sejam cães ou humanos. Também devemos nos preocupar em tratar a causa do problema e não sua manifestação. Confundir a causa desencadeante do comportamento inadequado com a consequência, que é o comportamento propriamente dito, é muito comum.
E a Vovozinha?
A energia calma e assertiva proclamada por César Millán é quase uma questão de dogma. Ou se tem fé, porque nosso líder assim proclama, ou se questiona e se busca novos horizontes. Assisti a um programa no qual um menininha de uns 12 anos conduzia a um Rotweiller sozinha pela rua. É claro que ela não tinha condições físicas de andar com um cão de 70 kg na via pública. O cão a arrastava e ia na direção que desejava... A solução de César foi mandar a menina mentalizar uma atitude de líder e se concentrar em um super herói. Então a garota fingia ser a Mulher Gato e cada vez que o cão se adiantava ela dizia “Mulher Gato” e o cão magicamente voltava a andar de seu lado. O que as câmeras não mostraram adequadamente é que, independentemente da atitude mental e da energia emanada pela garota, César dava um forte safanão na guia cada vez que a “Mulher Gato” emitia suas vibrações. Então o cão estava sendo subjugado pelo colar enforcador estrategicamente posicionado em sua traqueia, e não pela energia invisível da Mulher Gato. A falta de base teórica e a ignorância do acúmulo científico nos faz crer em misticismos, ou nas histórias da Vovozinha.
O papel de um líder não é o de ditador. Se você se portar como tal, seu cão vai passar o tempo tentando galgar um degrau na escala hierárquica e os conflitos serão eternos. Temos que orientar as pessoas para que socializem seu cão adequadamente e na idade apropriada para evitar comportamentos indesejados no futuro. Liderar é prever e prover as necessidades de seu cão: água fresca, comida adequada, cuidados médicos veterinários e local confortável para descanso.

2 comentários:

  1. Uma opinião muito válida. Entretanto não apresenta alternativas aos outros métodos.Como, então, fazer o animal entender quem é o líder, etc. segundo o Claudio?

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    1. Muito apropriado o questionamento. Inclusive, estava prestes a fazer o mesmo. Irei além: como evitar que seu cão/gato não se comporte como ser humano, tomando posse do sofá, da cama, pulando ou copulando em/com visitas, arrastando durante passeios, destruindo objetos da casa - mesmo que disponha de brinquedos de roer, de morder etc. - ou sendo agressivo (dominante era o que eu pensava ser o termo adequado... mas aparentemente não o é) com outros animais da casa, subjugando-os??

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