Ou de como
enganar a muitos por muito tempo mesmo sabendo muito pouco!
Cláudio |
*Este esclarecedor texto é do meu amigo Cláudio Pinheiro Junior - adestrador e estudioso do comportamento de cães (e pai de um dos menininhos mais lindinhos que já vi! o Tum!!) lá de Porto Alegre.
Como
adestrador profissional de cães e estudioso do comportamento animal, muitas
vezes me deparo com cães em situação de agressão frente a seus proprietários. E
não raro o diagnóstico da situação já vem pronto: problema de dominância, falta
de reconhecimento do líder, complexo de cão alfa (pasmem). E como já tem o
diagnóstico tem também o remédio: a saída é mostrar ao cão quem manda. Mas como
não sabem se comunicar de maneira que o cão lhes entenda, metem-lhe logo um
colar enforcador no pescoço e o esgoelam até quase a asfixia. Não raro enquanto
esgoelam gritam em língua portuguesa: o líder sou eu! Pausadamente, para o cão
não ter dúvidas. Ou então aplicam beliscões nos flancos enquanto emitem um som
parecido ao sibilar de uma cascavel do deserto. Invariavelmente estas pessoas
são expectadoras do programa O Encantador de Cães que passa em alguns canais da
TV paga e muito mal, no meu entendimento, causa à relação entre os animais
humanos e caninos.
Muito
pouco ou nada adianta tentar explicar que não é necessária a lesão física para
ensinar a um cão o comportamento desejado. Vivemos uma cultura de violência e a
agressão é parte de nossas relações interpessoais e interespecíficas. Parece
normal “castigar” um cão se ele se comporta de maneira que julgamos inadequada
ou então se ele nos “desobedece”.
O
Líder Alfa
Alguns
conceitos da ciência do comportamento se popularizaram de tal maneira que é
comum ouvirmos de leigos expressões como líder, alfa, e dominância. Toda a
popularização do conhecimento deve ser bem vista, exceto quando os conceitos
entram na cultura popular defasados e distorcidos. O conceito de cão
alfa/dominância, tal como se popularizou, nasceu de estudos de curto prazo
realizados com alcateias de lobos na década de 1940. Na época foi uma grande conquista
da ciência, já que os animais estudados estavam o mais próximo possível de seu
habitat natural. No entanto, nestes 70 anos que se passaram a ciência não ficou
estática e novos estudos produziram novos conhecimentos. Os principais
problemas deste conceito alfa/dominância são:
1. Foram
realizados com poucos indivíduos e durante um período curto de tempo. Assim os
pesquisadores se concentraram em facetas mais evidentes do comportamento, como
a caça. Não é uma amostragem aceitável estatisticamente, já que representa
pouco tempo na vida de poucos exemplares de lobos.
2. Os
comportamentos ritualísticos foram, infelizmente, mal interpretados pelos
pesquisadores. A manobra conhecida como Alpha Roll, que faz o cão deitar-se
expondo sua barriga e genitália foi entendida como uma mostra de força do cão
hierarquicamente superior sobre o inferior. Esta posição é muito mais uma
atitude de apaziguamento, tomada pelo cão inferior.
3. Cães
descendem dos lobos, mas são cães e não lobos. Milhares de anos de domesticação
e convívio com o ser humano definiram importantes mudanças comportamentais
entre as espécies. Estudar os lobos para entender os cães é quase tão inócuo
quanto estudar os filhotes de primatas superiores para entender os
comportamentos da juventude rebelde. Entre a Chita e a Jane há uma história
evolucionária distinta e complexa. Tarzan que o diga, já que muito sofreu para
conciliar os desejos de suas companheiras na casinha da árvore. Vamos encontrar
uma base comum, mas as distintas espécies tem distintos comportamentos frente a
distintas situações.
O
apresentador de O Encantador de Cães (Dog Whisperer) utiliza-se muito da
técnica do Alpha Roll em seus programas. Na verdade esta técnica foi
apresentada em 1976 no livro How to be your dog's best friend editado pelos
monges de New Skete, uma comunidade religiosa ortodoxa oriental do norte do
estado de Nova Iorque. César Millán bebeu água desta vertente, mas esqueceu-se
de ler a atualização publicada em 2002 (e lá se vão mais de 10 anos) na qual o
monge Job Michael Evans se retrata:
"Já
não recomendamos esta técnica e veementemente desencorajamos que os nossos
clientes e seguidores a usem... É potencialmente perigoso e pode levar a que o
dono do cão leve uma mordida na cara (ou pior)...”.
Submeter
forçadamente um cão a ficar deitado de lado nada tem a ver com o comportamento
natural de submissão/apaziguamento de expor a barriga e genitais. Como já
vimos, o comportamento natural é voluntário e oferecido pelo lobo/cão que
deseja encerrar a disputa demonstrando submissão. Forçar o cão a ficar deitado
de lado pode ser interpretado como uma agressão e um revide do cão seria
totalmente lícito.
Em vários
programas da série assisti ao sangue vertendo das mãos e braços d’O Encantador.
E o sangue é apresentado como um troféu de guerra, um triunfo, uma coragem
especial. Todas as vezes que vi jorrar sangue em frente às câmeras a rusga foi
com cães de pequeno porte, com baixo poder ofensivo. Fico imaginando a mesma
situação com um cão de grande porte. Por certo César estaria com um braço
pendurado e o eterno sorriso amarelo disfarçando a dor. Eu, particularmente,
entendo que quando nos lesionamos houve um acidente de trabalho. E se eu não
consigo me comunicar com o cão de maneira que não haja riscos à integridade
física minha e dele, algo está errado com a minha técnica.
Em trecho
mais adiante o monge-treinador adverte, fazendo seu mea culpa:
"Cuidado!
- donos de cães que tentam dominar o seu cão verbal ou fisicamente acabam com
cães medrosos e neuróticos".
E aqui
reside outra crítica ao “método” César Millán. Um cão, mesmo sem sofrer uma
grande lesão física, pode desenvolver um trauma para toda a vida. E o trauma
acaba se transformando em um problema comportamental. Achar que um cão que tem
medo compulsivo vai superar suas fobias se o expusermos radicalmente ao
desencadeante é o mesmo que acharmos que vamos curar alguém que sofre de
síndrome do pânico amarrando-o a um poste em um cruzamento movimentado.
Popularmente diríamos “pior a emenda que o soneto”.
Mas
eu conheço um cão “reabilitado” ou “encantado”
E quando
chegamos neste ponto, invariavelmente, surge o argumento de que o fulano,
beltrano ou cicrano “reabilitou” cães usando a técnica do César Millán. Devemos
ter muito cuidado quando utilizamos os termos reabilitado ou ressocializado. Em
muitos episódios que assisti, depois de travar uma luta ferrenha (totalmente
desnecessária, brutal e desumana) com o cão o “líder” humano finalmente se
sobressai e vence a justa, submetendo-se o cão a superioridade do
mexicano-americano. Mas a verdade é que nenhum tutor de cão em sã consciência
permitiria que um “treinador” subjugasse seu cão daquela forma. Os maus tratos
são evidentes na técnica usada pelo “Encantador de Cães”. O que justifica a
aceitação dos abusos praticados é a tendência que temos em aceitar
pacificamente tudo o que vem de superiores. Há estudos em que pessoas comuns
são recrutadas para experiências comportamentais e submetem outros seres
humanos a choques elétricos somente por que quem mandou executar a tortura era um
homem de avental branco que havia se apresentado como médico e tinha um crachá
na lapela. Então alguém que se apresenta como especialista em um canal da TV
paga tido como científico é alguém que deve saber o que faz.
Segundo o
“Encantador” o cão “reabilitado” apresenta uma energia calma e assertiva. Qual
o aparelho medidor de energia que ele usa não sabemos. Mas sabemos fazer uma
leitura do comportamento exibido pelo cão. Em geral os cães apresentam-se
quietos (e não calmos e muito menos relaxados) e exibem sinais claros de stress
como postura hirta, lambeduras, respiração ofegante ou coceiras e recusa de
alimentos. Ao invés de uma energia calma e assertiva encantada, os cães exibem
um comportamento conhecido como “shut down” ou “learned helplessness”. Em
português poderíamos dizer que o cão está “desligado” ou em uma situação de
desamparo aprendido. Isso significa que o cão simplesmente desistiu de
demonstrar qualquer tipo de comportamento, com o propósito de encerrar o
confronto. Fazendo uma analogia barata seria mais ou menos quando percebemos
que o atraso é inevitável e então passamos a realizar as tarefas calmamente, já
que por mais que nos apressemos não vamos conseguir fazer com que o relógio
ande para trás.
Este comportamento
do desamparo aprendido foi observado por cientistas que colocaram cães em uma
caixa fechada e lhes ministraram choques elétricos através do piso. Como era de
se esperar os cães inicialmente tentaram escapar e, depois de certo tempo, já
exaustos e frustrados por não encontrarem uma saída para a situação de
desconforto, simplesmente deitavam-se no chão. O mesmo chão que lhes continuava
a causar choque! Estariam eles calmos e assertivos levando choques?
Evidentemente que não! Apenas a experiência lhes ensinou que independentemente
da atitude que tinham o choque não cessava. Então a saída mais plausível seria
ficar imóvel, “desligado” em “desamparo”. Enfim, o desamparo aprendido é a
situação onde um animal, seja ele humano ou não, fica impotente frente ao
inevitável. Algo do tipo “o que não tem remédio, remediado está”.
A
Agressividade e o Método Encantador
Sofrermos
com a agressividade vinda de um animal que é considerado nosso melhor amigo é
perturbador. Sonhamos com um cão que venha em nossa direção abanando a cauda (o
que nem sempre condiz com consenso geral). A Agressividade Canina está sempre
relacionada a um contexto e devemos aprender a ler e entender as expressões e
rituais dos cães como forma de melhor nos comunicarmos e evitarmos acidentes e
traumas para ambos. Muito resumidamente os principais contextos nos quais a
agressividade se manifesta são:
Territorial:
disputa por espaços de ocupação;
Predatória:
disputa por alimentos;
Defesa:
proteção de sua integridade física e ou de seus objetos como brinquedos e
ossinhos e também a agressão por resposta a um estímulo doloroso;
Status
Social: disputa hierárquica na matilha;
Medo:
atitude presente em todos os organismos, a reação normal ao medo é fugir,
paralisar ou lutar.
Se um cão
está a agredir um ser humano justamente porque está com medo, quando mais
lutamos, mais aumentamos seu medo. O método de César pode até funcionar em cães
que estão em agressão por disputa de status social, mas se a agressão for
desencadeada por qualquer outro motivo a técnica será altamente prejudicial e
danosa. Mesmo na disputa hierárquica há maneiras mais racionais de se resolver
o conflito, sem que tenhamos que usar da força física. Todo o tratamento
comportamental deve primar pela segurança e pelo zelo físico de todos os
envolvidos no processo, sejam cães ou humanos. Também devemos nos preocupar em
tratar a causa do problema e não sua manifestação. Confundir a causa
desencadeante do comportamento inadequado com a consequência, que é o
comportamento propriamente dito, é muito comum.
E
a Vovozinha?
A energia
calma e assertiva proclamada por César Millán é quase uma questão de dogma. Ou
se tem fé, porque nosso líder assim proclama, ou se questiona e se busca novos
horizontes. Assisti a um programa no qual um menininha de uns 12 anos conduzia
a um Rotweiller sozinha pela rua. É claro que ela não tinha condições físicas
de andar com um cão de 70 kg na via pública. O cão a arrastava e ia na direção
que desejava... A solução de César foi mandar a menina mentalizar uma atitude
de líder e se concentrar em um super herói. Então a garota fingia ser a Mulher
Gato e cada vez que o cão se adiantava ela dizia “Mulher Gato” e o cão
magicamente voltava a andar de seu lado. O que as câmeras não mostraram
adequadamente é que, independentemente da atitude mental e da energia emanada
pela garota, César dava um forte safanão na guia cada vez que a “Mulher Gato”
emitia suas vibrações. Então o cão estava sendo subjugado pelo colar enforcador
estrategicamente posicionado em sua traqueia, e não pela energia invisível da
Mulher Gato. A falta de base teórica e a ignorância do acúmulo científico nos
faz crer em misticismos, ou nas histórias da Vovozinha.
O papel de
um líder não é o de ditador. Se você se portar como tal, seu cão vai passar o
tempo tentando galgar um degrau na escala hierárquica e os conflitos serão
eternos. Temos que orientar as pessoas para que socializem seu cão
adequadamente e na idade apropriada para evitar comportamentos indesejados no
futuro. Liderar é prever e prover as necessidades de seu cão: água fresca,
comida adequada, cuidados médicos veterinários e local confortável para
descanso.
Uma opinião muito válida. Entretanto não apresenta alternativas aos outros métodos.Como, então, fazer o animal entender quem é o líder, etc. segundo o Claudio?
ResponderExcluirMuito apropriado o questionamento. Inclusive, estava prestes a fazer o mesmo. Irei além: como evitar que seu cão/gato não se comporte como ser humano, tomando posse do sofá, da cama, pulando ou copulando em/com visitas, arrastando durante passeios, destruindo objetos da casa - mesmo que disponha de brinquedos de roer, de morder etc. - ou sendo agressivo (dominante era o que eu pensava ser o termo adequado... mas aparentemente não o é) com outros animais da casa, subjugando-os??
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