É o mesmo crime, é a mesma dor...
sexta-feira, 26 de julho de 2013
sexta-feira, 5 de julho de 2013
O Encantador, o Lobo Alfa e a Vovozinha.
Ou de como
enganar a muitos por muito tempo mesmo sabendo muito pouco!
Cláudio |
*Este esclarecedor texto é do meu amigo Cláudio Pinheiro Junior - adestrador e estudioso do comportamento de cães (e pai de um dos menininhos mais lindinhos que já vi! o Tum!!) lá de Porto Alegre.
Como
adestrador profissional de cães e estudioso do comportamento animal, muitas
vezes me deparo com cães em situação de agressão frente a seus proprietários. E
não raro o diagnóstico da situação já vem pronto: problema de dominância, falta
de reconhecimento do líder, complexo de cão alfa (pasmem). E como já tem o
diagnóstico tem também o remédio: a saída é mostrar ao cão quem manda. Mas como
não sabem se comunicar de maneira que o cão lhes entenda, metem-lhe logo um
colar enforcador no pescoço e o esgoelam até quase a asfixia. Não raro enquanto
esgoelam gritam em língua portuguesa: o líder sou eu! Pausadamente, para o cão
não ter dúvidas. Ou então aplicam beliscões nos flancos enquanto emitem um som
parecido ao sibilar de uma cascavel do deserto. Invariavelmente estas pessoas
são expectadoras do programa O Encantador de Cães que passa em alguns canais da
TV paga e muito mal, no meu entendimento, causa à relação entre os animais
humanos e caninos.
Muito
pouco ou nada adianta tentar explicar que não é necessária a lesão física para
ensinar a um cão o comportamento desejado. Vivemos uma cultura de violência e a
agressão é parte de nossas relações interpessoais e interespecíficas. Parece
normal “castigar” um cão se ele se comporta de maneira que julgamos inadequada
ou então se ele nos “desobedece”.
O
Líder Alfa
Alguns
conceitos da ciência do comportamento se popularizaram de tal maneira que é
comum ouvirmos de leigos expressões como líder, alfa, e dominância. Toda a
popularização do conhecimento deve ser bem vista, exceto quando os conceitos
entram na cultura popular defasados e distorcidos. O conceito de cão
alfa/dominância, tal como se popularizou, nasceu de estudos de curto prazo
realizados com alcateias de lobos na década de 1940. Na época foi uma grande conquista
da ciência, já que os animais estudados estavam o mais próximo possível de seu
habitat natural. No entanto, nestes 70 anos que se passaram a ciência não ficou
estática e novos estudos produziram novos conhecimentos. Os principais
problemas deste conceito alfa/dominância são:
1. Foram
realizados com poucos indivíduos e durante um período curto de tempo. Assim os
pesquisadores se concentraram em facetas mais evidentes do comportamento, como
a caça. Não é uma amostragem aceitável estatisticamente, já que representa
pouco tempo na vida de poucos exemplares de lobos.
2. Os
comportamentos ritualísticos foram, infelizmente, mal interpretados pelos
pesquisadores. A manobra conhecida como Alpha Roll, que faz o cão deitar-se
expondo sua barriga e genitália foi entendida como uma mostra de força do cão
hierarquicamente superior sobre o inferior. Esta posição é muito mais uma
atitude de apaziguamento, tomada pelo cão inferior.
3. Cães
descendem dos lobos, mas são cães e não lobos. Milhares de anos de domesticação
e convívio com o ser humano definiram importantes mudanças comportamentais
entre as espécies. Estudar os lobos para entender os cães é quase tão inócuo
quanto estudar os filhotes de primatas superiores para entender os
comportamentos da juventude rebelde. Entre a Chita e a Jane há uma história
evolucionária distinta e complexa. Tarzan que o diga, já que muito sofreu para
conciliar os desejos de suas companheiras na casinha da árvore. Vamos encontrar
uma base comum, mas as distintas espécies tem distintos comportamentos frente a
distintas situações.
O
apresentador de O Encantador de Cães (Dog Whisperer) utiliza-se muito da
técnica do Alpha Roll em seus programas. Na verdade esta técnica foi
apresentada em 1976 no livro How to be your dog's best friend editado pelos
monges de New Skete, uma comunidade religiosa ortodoxa oriental do norte do
estado de Nova Iorque. César Millán bebeu água desta vertente, mas esqueceu-se
de ler a atualização publicada em 2002 (e lá se vão mais de 10 anos) na qual o
monge Job Michael Evans se retrata:
"Já
não recomendamos esta técnica e veementemente desencorajamos que os nossos
clientes e seguidores a usem... É potencialmente perigoso e pode levar a que o
dono do cão leve uma mordida na cara (ou pior)...”.
Submeter
forçadamente um cão a ficar deitado de lado nada tem a ver com o comportamento
natural de submissão/apaziguamento de expor a barriga e genitais. Como já
vimos, o comportamento natural é voluntário e oferecido pelo lobo/cão que
deseja encerrar a disputa demonstrando submissão. Forçar o cão a ficar deitado
de lado pode ser interpretado como uma agressão e um revide do cão seria
totalmente lícito.
Em vários
programas da série assisti ao sangue vertendo das mãos e braços d’O Encantador.
E o sangue é apresentado como um troféu de guerra, um triunfo, uma coragem
especial. Todas as vezes que vi jorrar sangue em frente às câmeras a rusga foi
com cães de pequeno porte, com baixo poder ofensivo. Fico imaginando a mesma
situação com um cão de grande porte. Por certo César estaria com um braço
pendurado e o eterno sorriso amarelo disfarçando a dor. Eu, particularmente,
entendo que quando nos lesionamos houve um acidente de trabalho. E se eu não
consigo me comunicar com o cão de maneira que não haja riscos à integridade
física minha e dele, algo está errado com a minha técnica.
Em trecho
mais adiante o monge-treinador adverte, fazendo seu mea culpa:
"Cuidado!
- donos de cães que tentam dominar o seu cão verbal ou fisicamente acabam com
cães medrosos e neuróticos".
E aqui
reside outra crítica ao “método” César Millán. Um cão, mesmo sem sofrer uma
grande lesão física, pode desenvolver um trauma para toda a vida. E o trauma
acaba se transformando em um problema comportamental. Achar que um cão que tem
medo compulsivo vai superar suas fobias se o expusermos radicalmente ao
desencadeante é o mesmo que acharmos que vamos curar alguém que sofre de
síndrome do pânico amarrando-o a um poste em um cruzamento movimentado.
Popularmente diríamos “pior a emenda que o soneto”.
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